A SEGURANÇA DEVE SER PÚBLICA OU PRIVADA?

* HILTON BENIGNO
A segurança pública há muito deixou de ser preocupação somente dos governantes para se tornar um dos assuntos mais recorrentes nas sociedades modernas, conquistando espaço cada vez mais crescente no rol das principais preocupações da opinião popular. Sobre o tema, a Carta Constitucional de 1988 estabeleceu em seu artigo 144, que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos...”. Pode-se afirmar que se trata de uma atividade pertinente aos órgãos estatais - por dever, e à comunidade - como partícipe, realizada para proteger as pessoas e o patrimônio, prevenindo, controlando e reprimindo a violência e as ações criminosas. É correto também concluir que é apenas parte de um todo maior, inserida num conceito ainda mais amplo de ordem pública, que por sua vez, é constituida pelas condições mínimas necessárias a conveniente e salutar vida em sociedade, a saber: segurança, salubridade e tranqüilidade públicas. É exatamente sobre a naturezapública hodiernamente atribuída à ordem e à segurança - com incomum clareza cravada no Texto Magno pelolegislador constituinte de 1988, que se tratará, pois ao longo da história da humanidade o provimentoda segurança vem sofrendo mutações, ora por entes públicos, ora por particulares. A inspiração para essa abordagem surgiu com a edição da coluna Repórter 70 do dia 13 de julho do corrente, noticiando a seguinte matéria “Vale tudo - ou quase tudo - para prevenir- se da insegurança sem controle, sobretudo neste mês de julho de ruas desertas em Belém, nos finais de semana.

No bairro do Umarizal, uma brigada particular, digamos assim, percorre as ruas até duranteo dia. E já tem a adesão de muitos comerciantes do bairro, um dos preferidos pela bandidagem. E essa ronda não está sendo feita somente durante o mês de julho, não. Está sendo feita permanentemente, há vários meses”. Juridicamente, conceitua-se ordem pública como sendo o “conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo poder de polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum” segundo o Regulamento para as polícias militares e corpos de bombeiros militares (R-200).

Sociologicamente, poder- se- ia dizer que a ordem pública se materializa pela convivência pacífica e harmoniosa, regrada pelo interesse público, pela estabilidade das instituições e pela observância dos direitos individuais e coletivos, sendo um estado de legalidade, em que as autoridades exercem suas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam. Como se vê, é uma expressão de complexa, vaga e abrangente definição, que para a maioria dos doutrinadores é mais fácil percebê-la do que defini-la.

Há séculos que a legitimidade de um governo depende da sua capacidade em manter a ordem, pois a proliferação da violência, o aumento do medo e do sentimento de insegurança afetam, em qualquer lugar do mundo, o grau de confiabilidade dos governantes. Dizia Bayley que “a manutenção da ordem é a função essencial do governo. Não apenas a própria legitimidade do governo é em grande parte determinada por sua capacidade em manter a ordem, mas também a ordem funciona como critério para se determinar se existe de fato algum governo”.

A manutenção da ordem pública, ou a demanda por segurança, é sem sombra de dúvidas uma das principais A segurança deve ser pública ou privada? Plataformas de afirmação da cidadania e, consequentemente, da classe política. Sempre foi assim, e dificilmente deixará de ser.

Sabe-se que a maioria dos conflitos sociais é gerada por condutas desviantes. Esses desvios comportamentais são hodiernamente tratados por instituições estatais especializadas no controle social.

Reina, segundo Sapori, no Estado democrático de direito a máxima da ordem sob a lei. Contudo, houve momentos em que a proteção das pessoas era mantida sem maiores cobranças das autoridades governamentais, ou seja, as atividades de controle de condutas desviantes não eram da espécie pública, ao contrário, eram de cunho privado. Essa transformação teve seu início quando a segurança passou a ser garantida, nos dizeres de Sapori, por “arranjos organizacionais estatais, providos do aparato burocrático necessário para sua distribuição”.

A mudança só ocorreu porque às elites econômicas e políticas coube a decisão de colaborar, ou não, com os custos da coletivização da segurança. Sugerem os especialistas, salvo melhor juízo, que a ordem econômica foi decisiva, como é até hoje, para a transformação de um bem individualizado em coletivo, não importando a sua natureza. O processo de mutação ganhou um forte impulso quando as noções de segurança interna e segurança externa passaram a se diferenciar. Com essa distinção o Poder Público passou a se preocupar mais com as questões rotineiras de proteção da população - garantidoras da segurança interna - que eram executadas por órgãos estatais burocratizados e especializados, como as polícias.

O surgimento do Estado- Nação foi o grande motivador da mudança, afastando a ideia de que o aumento dos comportamentos desviantes provocou as transformações, pois esses sempre existiram, perpassando por diversas sociedades não importando a época e o tipo de regramento social exigido. A metamorfose experimentada pela segurança – de privada à pública, e vice-versa - pode ser cronológica e didaticamente resumida em três momentos históricos: da Antiguidade Romana, passam para o período Medieval até chegar a Revolução Francesa. Via de regra, a atividade de manutenção da ordem nos Estados Tradicionais eram adstritas às comunidades locais, com ênfase para a descentralização e ações privadas em detrimento das públicas. Na antiguidade clássica, em Roma, existiu uma administração policial de caráter público responsável pela manutenção da ordem nas ruas. Augusto criou a figura do prefeito, praefectus urbi, com a missão de comandar os vigiles – responsáveis pelo patrulhamento das ruas, e os stationarii – ocupantes de postos fixos, todos nomeados e pagos pela autoridade central a quem prestavam contas. Com a queda de Roma, desaparecem esses órgãos. No feudalismo a segurança dos indivíduos foi de responsabilidade do proprietário da terra, cabendo a este a tarefa de prover a ordem no território sob o seu domínio, tarefa eminentemente de caráter particular.

Na Inglaterra, entre os séculos X e XIII, as comunidades aldeãs organizavam-se em tythings, que eram “grupamentos de homens livres incumbidos de zelar pela segurança de cada um dos membros e também de deter eventuais criminosos, submetendo-os à justiça real”, segundo Sapori. No século XIV apareceu na França a Maréchausseé, composta por cavaleiros que exerciam funções policiais nas zonas rurais, reprimindo violências coletivas e a criminalidade individual.

Na Espanha, surgiu a Santa Hermandad, composta por arqueiros que protegiam os peregrinos e comerciantes, perseguindo os criminosos até os limites do território comunal. É a partir do Estado absolutista que as mudanças começam a ser produzidas com mais intensidade e nitidez.

Entre os anos de 1660 e 1890, as funções policiais transformam-se nas diversas sociedades européias. As formas de polícias desprendem-se das mãos das comunidades locais e dos senhores feudais, para constituir organizações policiais profissionalizadas, com estruturas burocráticas, sob o controle do Estado. É a mudança do privado para o público, da organização descentralizada para a organização centralizada, da autoridade feudal para a autoridade estatal.

A França foi a grande inspiradora para o desenvolvimento dos sistemas policiais europeus. O modelo francês tinha dois organismos: um regimento de elite do exército, a militarizada Maréchaussée, que atuava na zona rural, rebatizada em 1791 de Gendarmerier; e uma Tenência de Polícia, em Paris, que combatia a criminalidade, dividindo a capital francesa em setores e bairros que eram chefiados por comissários assistidos por inspetores, atuando em formações de patrulha a pé e a cavalo durante todo o dia.

Em 1829, o Parlamento Inglês assume a responsabilidade sobre o policiamento em Londres. Cria-se um organismo policial, de natureza civil, profissionalizado, trabalhando em tempo integral, diferentemente das Gendarmeries.

Em terras de Vera Cruz verificou-se que nas Capitanias hereditárias os Donatários proviam a segurança por meio de voluntários e mercenários. Alguns historiadores apontam o surgimento dos Quadrilheiros em 1626, no Rio de Janeiro, comandados pelos capitãesmores de estrada e assaltos, como um primeiro esboço de organização policial, de natureza civil.

Em 5 de abril de 1808, criou-se a Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil, e o cargo de Intendente Geral da Polícia, no Rio de Janeiro, que administrava a cidade e era juiz. Em 13 de maio de 1809, ocorreu a criação da Divisão Militar da Guarda Real, também no Rio de Janeiro, organização regular, uniformizada, estruturada em princípios de hierarquia e disciplina, cuja missão era prover a segurança e a tranqüilidade pública da cidade. Assim, veem-se os dedos do Estado português na segurança da Colônia.

Pode-se dizer que até 1808 não há registro de organizações policiais (como as concebemos atualmente) aqui no Brasil, e, portanto, prevalecia a natureza privada da segurança. A partir da Constituição Imperial de 1824, e as seguintes, o Estado assume a proteção da sociedade.

Verifica-se que o incremento populacional das cidades e o surgimento cada vez mais crescente de oportunidades de roubos e furtos tornaram-se terreno fértil para que o controle das atividades criminais passasse a ser entendido como um problema público, merecedor da intervenção estatal. Para Sapori, “A estruturação dos sistemas policiais modernos é a expressão mais marcante do papel decisivo assumido pelo Estado na garantia da ordem interna”.

No bojo desse processo, as organizações policiais vão se centralizando, burocratizando, profissionalizando e monopolizando a provisão da ordem interna, assistindo-se na Europa, à exceção da Inglaterra, a consolidação das polícias militares. Na França, a Gendarmerie, na Itália os Carabineiros, e na Espanha a Guarda Civil.

Em última análise, pode-se afirmar que a construção da segurança como bem coletivo se concretizou durante a substituição da economia feudal pelo capitalismo, e da afirmação da burguesia como classe politicamente dominante, pois a sociedade burguesa completa o processo histórico de transição do monopólio privado para o monopólio público da violência. Na modernidade, estruturas públicas e profissionais estão voltadas para as funções de manutenção da ordem e da segurança pública, principalmente o aparelho policial.

Mas, será que somente o Estado, por meio de sua força policial será capaz de cumprir essa missão? Recorrendo a Marcos Rolim, apresento as seguintes indagações “Garantir a segurança é, por certo, uma missão fundamental para as forças policiais. Mas só pra elas? Será possível imaginar a garantia da segurança pública sem o concurso de várias agências governamentais, sem uma política de segurança que envolva áreas tão díspares como a educação, a saúde, a geração de emprego e renda e as oportunidadesde lazer? E mais, será possível imaginar a garantia da segurança pública exclusivamente através dos papéis a serem cumpridos pelo Estado, sem considerar a ação das pessoas e o papel da sociedade civil?”.

Retornando à matéria jornalística, acredito - sempre respeitando opiniões contrárias - que a formação de brigadas está longe de ser um movimento que transfira para o particular a responsabilidade pela proteção das pessoas, numa espécie de privatização da segurança. Apesar de sua proliferação ser uma realidade, certamente fruto dos indesejáveis índices criminais, esses organismos devem ser colaboradores do Estado na construção de uma convivência social mais fraterna e harmônica. Mesmo sendo a segurança res publica (coisa pública) o Estado precisa da participação de todos. De pé e à ordem, por uma sociedade mais segura.
* Hilton Benigno  é tenente-coronel da Polícia Miitar do Pará e bacharel em Direito.
hiltonbenigno@uol.com.br

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comente