Belém, Geografia íntima


Na geografia geral da cidade, há um punhado de bairros, uns quantos canais, uma infinidade de ruas, uns becos medonhos e diversos fossos das nossas discórdias e problemas tantos.
Foto: Tarso Sarraf
Olhando de cima, são quadras ponteadas de prédios e árvores para formar a península que, na prática, é um garrafão de vinho barato, estreito na boca e bojudo para baixo para guardar nossas aflições, nossa vontade de ser o que nunca seremos.

De longe, é como outra qualquer entre as mais de cinco mil no quebra-cabeça urbano no Brasil. Dessas que se acha em qualquer beira de caminho poeirento ou qualquer fim de mundo/estrada, mais apropriado ao nosso caso.

De perto, porém, vai ganhando contornos, erguendo a saia para mostrar a realidade, nos guardar no pertencimento e ser chamada de nossa.

E vem sempre alguém falar de mangueira, de mercado, de açaí, de música, de rio, floresta, como se coubesse as histórias das nossas esquinas nessa tentativa desesperada de limitar, de enquadrar, para saber quem somos, como somos e porque diabos encalhamos aqui para estabelecer a nossa própria cova.

E não importa se rezamos em outubro, pegamos chuva em janeiro, morremos de calor em agosto, dançamos em junho: debaixo d’água ou do sol claudicante construímos e destruímos todo dia nossa cidade em alegria, dor e memória em uma relação amorosa e odiosa feérica, doída e balsâmica como namoros de longa data desgastados imersos na ciranda de querer partir e não desistir de ficar.

E só enxerga a cidade sem o estranhamento típico de um novo lugar quem, de fato, consumiu o seu ar, pisou suas pedras, escorou-se em suas paredes, afundou sapatas para erguer seus domínios, rasgou suas pistas, feriu seus joelhos na terra, amaldiçoou seu mormaço, tremeu o seu frio, enfim, viveu nela.

Aos que fazem de Belém pátria e abrigo, como olhar uma esquina e não ver a vida como um milhão de pequenos filmes a se multiplicar em cada passo, a se repetir para formar o filme maior que é a própria vida?

Sim, meu caro, porque a cidade é nossa vida, real e inventada no recipiente frágil da nossa alma; nosso cenário possível na história que só paramos de contar quando os olhos se fecham de vez, não importa em que curva do mundo vamos morrer.

Como passar pelo Goeldi e não lembrar a infância, os passeios, o pavor de se deparar com um homem sem braços e sem pernas pedindo esmola no meio da calçada?

Como olhar o Teatro da Paz e não rememorar o ano de 1998 e toda arte e pessoas definitivas que dele brotaram e marcaram para sempre o coração?  

Como não ver pelas ruas da Pedreira um beijo atrás do hospital, as idas para escola de uniforme amassado, a primeira menina atropelada quando o asfalto chegou na Marquês, as caminhadas na madrugada, a voz dos grandes amigos debaixo da castanheira, o jambo roubado na vila militar?

Como entrar pelo Jurunas, Guamá, Cremação e não lembrar meu pai, suado e firme, na correria para ganhar o pão de casa em casa?

Como andar pelo Comércio e não enxergar minha mãe em caminhadas exaustivas que terminavam sempre para mim em uma dor de cabeça e calos nos pés e uma revista em quadrinho a mais como prêmio pela jornada?

Como andar pelas ruas da cidade e não traçar os roteiros dos bares de noite, das gargalhadas, das conversas em fluxo contínuo, das parescências e diferenças com os amigos-irmãos de luta, de riso, de frustrações e planos malogrados para mudar o mundo?

Como passar por esse emaranhado de vias sem esbarrar em ex-amores distribuídos em casas, edifícios, supermercados, motéis, praças, berros, afagos, flores e ilusões perdidas depois de sair de um elevador, de subir no ônibus, de topar com as latas da rua, de entrar cabisbaixo e com o peito em chama fria em casa?


Como olhar a cidade sem se enxergar nela como parte de sua anatomia de pedra, lama, planta e água? Como olhar no espelho e não ver essa cidade nas rugas de sua testa, nos vincos mais fundos da cara, no corpo que já não é mais tão ágil?

Como pensar em voar sem sentir um aperto imenso de deixar a cidade para trás?

Para quem vive Belém, a geografia geral da cidade está além dos bairros, canais, ruas, becos e problemas.

A, nós, que dela fazemos nossa rota e destino, Belém está muito além dos clichês de imagens, palavras, verdades e mentiras e das jaulas para manter bem comportada a onça morena.

Para nós, que pagamos o preço todo dia, Belém está viva e reativa a simples contemplação, como uma fera difícil de domesticar e impossível de lhe prestar indiferença.

Para nós, que a amamos sem medida, Belém é topônimo de geografia íntima, mas, sobretudo, a dançarina da saia rodada no salão em beleza de sobra, em desejo instigado, em movimento contínuo, sempre a girar.

http://bebadogonzo.blogspot.com.br/2013/01/belem-geografia-intima.html

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